Sem dúvida, uma das primeiras etapas no processo de análise do traçado eletrocardiográfico é a identificação da frequência cardíaca (FC). Ela é um dado essencial para determinar o ritmo corretamente e pode significar, logo de cara, que o caso do paciente é uma emergência médica – por exemplo, quando o paciente apresenta uma frequência cardíaca abaixo de 30 batimentos por minuto (bpm).
O que talvez você ainda não saiba é que, apesar de aprendermos uma ou no máximo duas regras para o cálculo, existem quatro formas de fazermos essa avaliação e cada uma delas tem um uso específico. Mais pra frente aqui no texto, você vai entender que não é possível medir a FC de uma fibrilação atrial (FA) usando a regra dos “quadradões”, por exemplo.
Então, se você quer se tornar um ás na avaliação da FC do ECG do seu paciente, continua aqui comigo.
Entendo os limites da normalidade
Antes de começarmos propriamente dita a análise da FC, é importante lembrar quais são os valores de referência para nortear o diagnóstico e o uso correto de nomenclaturas relacionadas à quantidade de batimentos por minuto no ECG.
A frequência cardíaca normal e adultos
Segundo as III Diretrizes da Sociedade Brasileira de Cardiologia Sobre Análise e Emissão de Laudos Eletrocardiográficos, ou em outras palavras, a Diretriz de ECG atual da SBC, definimos a frequência cardíaca normal em adultos dentro do intervalo de 50 a 100 bpm. Isso é interessante de se comentar porque, mesmo sendo algo que não é novidade, ainda há colegas que definem o ponto de corte de 60 bpm para determinar se se trata de bradicardia ou não. O correto na verdade é de acordo com o esquema abaixo:
Tabela 1 – Classificação da FC em adultos.
Vale lembrar que 50 e 100 bpm são valores considerados ainda normais, ok? Portanto, se pegar um ECG com exatos 100 batimentos por minuto, não vá se referir à FC como taquicardia, ok?
Análise da FC em crianças
Já quando o assunto é ECG pediátrico, a coisa fica diferente. É preciso normatizar a análise de acordo com uma tabela conhecida como Tabela de Davignon (Figura 1). Nela, você encontra uma série de valores de referência para diversos aspectos do ECG como FC, duração do QRS ou do intervalo PR, entre outros, de acordo com a idade. A gente vai falar sobre isso especificamente num artigo de ECG pediátrico.
O interessante nesse momento é saber que, dependendo da fase da vida da criança – e isso pode incluir a diferença de meses ou mesmo dias! -, o valor da FC pode variar e chegar até 185 bpm e ainda ser considerado normal para aquela faixa etária. Portanto, fique ligado na idade do paciente e não saia por aí dizendo que todo ECG com mais de 150 bpm é, sem dúvida, uma taquicardia.
E pra terminar, é importante lembrar que o ECG é considerado pediátrico para pacientes até 16 anos e, justamente a última faixa de referência, 12 a 16 anos, é legal que você saiba de cor quando for fazer a análise: a FC é normal entre 60 e 120 bpm.
Figura 1: Tabela de Davignon, ferramenta na análise de ECGs pediátricos.
Avaliando a frequência cardíaca
Bom, passadas essas informações iniciais, vamos começar a entender como podemos fazer os cálculos da FC no traçado do ECG. Para isso é preciso relembrar alguns conceitos básicos referentes ao registro do traçado.
Entendo os parâmetros do ECG
Todo ECG deve ser impresso em um papel milimetrado e, salvo se indicação diferente, na velocidade de registro de 25 mm/s. Isso é a base para os cálculos que vamos utilizar.
Configurado dessa forma, cada milímetro do traçado terá uma duração de 40 ms. Vamos entender?
1 segundo = 1000 ms. Se para cada 1000ms, o traçado irá se deslocar 25 mm, para 1 mm, o tempo gasto será:
1000 = 25
X 1
X = 1000 x 1
25
X = 40 ms
Então, em outras palavras, um “quadradinho” tem a duração de 40 ms. Com isso, a gente consegue definir uma outra referência. O “quadradão”, que é o que vemos com uma linha mais grossa no papel, é formado por cinco quadradinhos. Portanto, a sua duração é de 5 x 40 ms = 200 ms. Vamos ver na figura abaixo a representação do quadradinho, do quadradão e os seus significados:
Figura 2: As referências de duração que o papel milimetrado permite avaliar em exames realizados com velocidade de 25 mm/s.
Da mesma forma, se quisermos calcular a duração de trechos maiores do papel milimetrado, basta usar a referência de duração do quadradinho e do quadradão. Vale lembrar que você pode converter os valores de milissegundos para segundos. Veja estes exemplos:
17 quadradões = 17 x 200 ms = 17 x 0,2s = 3,4 s.
Portanto, 17 quadradões tem 3,4 segundos de duração.
28 quadradinhos = 17 x 40ms = 17 x 0,04s = 0,68 s ou 680 ms.
Portanto 28 quadradinhos tem duração de 0,68 segundo de duração.
A importância de você saber isso é que, lá na frente, quando formos ver a última forma de calcular a FC de um evento, vamos precisar calcular a duração do trecho que iremos analisar. Então, se não entendeu essa parte, revise já o conteúdo.
Por fim, precisamos saber as referências para o período de um minuto ou 60 segundos, já que vamos utilizá-las quantos batimentos há dentro desse intervalo – não queremos justamente calcular a quantidade de batimentos por minuto?
Se um quadradinho tem a duração de 40 ms, quantos quadradinhos representam a duração de 60 segundos?
Precisamos colocar as unidades todas iguais. Portanto, podemos passar 60 segundos para milissegundos e teríamos o valor de 60.000 ms para representar um minuto.
Se queremos descobrir quantos quadradinhos temos em um minuto, basta dividir 60.000 ms por 40ms, e chegamos ao valor de 1500 quadradinhos.
Portanto, 1500 quadradinhos representam 60 segundos (ou minuto) no ECG.
Essa referência será muito importante para iniciarmos as medidas.
A regra dos quadradinhos
Sabendo então que existem parâmetros que devemos seguir, a primeira forma de avaliar a FC do traçado é tentar usar a referência dos quadradinhos para o cálculo.
É relativamente simples: basta contar a quantidade de quadradinhos que há entre um batimento e outro e dividir 1500 por este número:
Figura 3: Regra do “1500 dividido pelo número de quadradinhos”.
E por que fazemos essa conta? Porque estamos contando quantos batimentos com o intervalo de 21,5 quadradinhos cabem em 1500 quadradinhos (ou um minuto). Lembrando que o primeiro batimento, o da esquerda na foto, entra como base de início para o cálculo, ou seja, em 21,5 quadradinhos aparece o primeiro batimento exatamente após o término do anterior.
É importante lembrar que esse cálculo só é válido para ritmos regulares, ou seja, aqueles em que o intervalo RR se mantém constante. Caso isso não ocorra, como numa fibrilação atrial por exemplo, não vai ser possível estimar a FC por este método e vamos precisar lançar mão de outra maneira – fique tranquilo, vamos ver mais pra frente.
A regra dos quadradões
Uma outra forma de fazermos uma estimativa rápida da frequência cardíaca no ECG é usando a regra dos quadradões. Ela pode ser bem útil quando a gente tá na “correria” do PS porque permite a gente inferir rapidamente se estamos diante de uma bradicardia ou taquicardia, e também um provável intervalo de onda a FC se encontra.
Figura 4: Regra dos “quadradões”.
De acordo com a imagem, a regra consiste em usar a referência dos quadradões para estimar a frequência cardíaca. Na verdade, estamos utilizando a fórmula da regra anterior para calcular antecipadamente alguns pontos de referência para a FC – ou seja, dividindo 1500 pelos múltiplos de 5 quadradinhos. Desse modo, se um intervalo RR tiver uma duração aproximada de 3 “quadradões” (ou 15 quadradinhos) por exemplo, de acordo com esta regra, a FC aproximada seria de 100 bpm. Vamos ver um exemplo no ECG:
Figura 5: Analisando o mesmo traçado da figura 3, agora com a regra dos “quadradões”. Veja que é possível inferir que a FC está entre 60 bpm e 75 bpm, algo mais próximo de 75, o que bate com o valor de 70 bpm encontrado no cálculo da figura 3.
É claro que a regra se torna extremamente prática quando conseguimos avaliar a partir de um batimento que se encontra exatamente sobre a linha mais grossa do papel milimetrado, o que indica o início de um novo “quadradão”. No caso do exemplo da figura 5, o primeiro QRS do traçado foi o que serviu de referência para o cálculo e ele começa cerca de 1,5 quadradinho após a linha mais grossa que indica um “quadradão”.
E, assim como na regra dos quadradinhos, a gente precisa lembrar que essa daqui também só pode ser utilizada para ritmos regulares, se não o cálculo não será fidedigno.
Contagem de batimentos em tira longa de ritmo
Hoje em dia, é muito comum termos contato com traçados de ECG no formato “eletropaper”, que é esse do tamanho de uma folha A4. Na porção inferior desse tipo de traçado, costuma vir uma tira longa de ritmo, geralmente apresentando a derivação DII, e que registra 10 segundos de duração – se você quiser contar os quadradões e multiplicar por 0,2s, você vai encontrar esse valor.
Então, se sabemos que esse trecho do traçado apresenta essa duração, para calcularmos a FC do paciente, basta contarmos a quantidade de batimentos presentes nesse trecho e multiplicar por 6. Assim, teremos uma estimativa de quantos batimentos estariam presentes se fosse possível registrar uma tira de ECG com duração de 60s.
Figura 6: Traçado de ECG em “eletropaper” mostrando a tira longa de ritmo cuja duração é de 10 segundos.
Nesse exemplo, é possível perceber que os intervalos entre os batimentos(marcados pelos asteriscos) é bem irregular. Nesse caso, devemos contar a quantidade de batimentos que vemos nessa tira de 10 segundos e multiplicar o valor encontrado por 6. Dessa forma, o valor estimado da FC para este traçado seria:
21 x 6 = 126 bpm
A contagem de batimentos na tira longa é uma regra que vale tanto para ritmos irregulares quanto para regulares. A gente acaba não usando para ritmos regulares porque, como ela é uma inferência, não seria interessante usar, já que a regra dos quadradinhos permite um cálculo mais acurado da FC, principalmente quando o valor se encontrar nos limites de transição para o diagnósticos de bradicardias e taquicardias.
A contagem de batimentos num fragmento de traçado
O último método para calcular a FC em um traçado é derivado da regra anterior. Nós vamos utilizá-lo sempre que o fragmento de ECG que estamos avaliando não for conhecido.
Vamos ver o exemplo abaixo:
Figura 7: Trecho de um registro de ECG em que delimitamos a duração do período em análise.
A partir da medida da duração do período analisado, fica fácil obter a FC do fragmento. Basta fazer uma regra de três utilizando a quantidade de batimentos presentes na tira, excluindo o da seta vermelha – ou seja, o total de batimentos menos 1. Assim, teríamos:
Em 2,68 segundos temos 5 batimentos…
Em 60 segundos temos quantos?
Fazendo os cálculos, teríamos: 5 x 60 s / 2,68 s = aproximadamente 112 bpm.
Essa regra é muito útil para calcular a FC de eventos ectópicos, como em nos casos de taquicardias ventriculares, por exemplo.
Não é tão difícil assim
Se você chegou até aqui, parabéns. Espero que tenha passado por cada item experimentando os métodos utilizados em alguns traçados e que você continue praticando ao longo do tempo.
Num primeiro momento, pode até parecer muita conta, muito cálculo, mas com o tempo você se habitua. E, logo logo, todas essas ferramentas farão parte da rotina de análise dos traçados.
Experimente em todas as situações possíveis utilizar o conhecimento que você adquiriu aqui. Se não, de nada vale você investir seu tempo, você precisa trazer resultado para você.
Aqui, vale frisar mais uma vez que a análise da FC deve fazer parte de uma rotina, uma sistemática bem definida que você deve utilizar toda vez que for interpretar um ECG. Se você quiser saber um pouco mais sobre este tema, a gente publicou faz pouco tempo o artigo QUAL A MELHOR MANEIRA DE INTERPRETAR UM ECG NO PS SEM DEIXAR PASSAR NADA?
Vai lá, dá uma conferida, e qualquer coisa, é só postar suas dúvidas nas nossas redes sociais.